Nick Cave resgata obsessões em romance
A Morte de Bunny Munro, lançado no Brasil, é movido por sexo, violência e morte
Libby está gravemente deprimida, em parte devido ao modo como é tratada pelo marido, Bunny Munro, que é viciado em sexo e vive siderado de álcool e drogas. Ela se suicida e deixa o filho de 9 anos, Bunny Jr, aos cuidados do atarantado viúvo. Bunny pai está ainda mais perplexo, porque o iniciador da linhagem, o irascível Bunny Munro I, de 80 anos, está à beira da morte, com câncer no pulmão. As relações entre os três personagens masculinos formam o fio que conduz A Morte de Bunny Munro (ed. Record, 352 páginas, R$ 50), segundo romance do roqueiro australiano (radicado na Inglaterra) Nick Cave.
A angústia obssessiva pela morte é a tônica do livro, como tem sido de grande parte da obra musical de um dos artistas mais rebuscados, profundos e viscerais do rock dos anos 1980 em diante – em 1996, por exemplo, dedicou à morte (e à angústia) um disco inteiro, Murder Ballads. Mais evidente que nunca, o trinômio sexo-violência-morte move com humor e dor a nova narrativa de Cave, que escreveu seu primeiro livro (And the Ass Saw the Angel, nunca lançado no Brasil) em 1989, morou em São Paulo entre 1990 e 1993 e teve um filho com uma brasileira em 1991.
Dependente de álcool, nicotina, cocaína e sexo, Bunny Munro vende produtos de beleza de porta em porta e vive na busca incessante, melancólica e ineficaz de satisfazer aquelas carências. No contato com o filho, percebe-se aos poucos que Bunny pai tem mais ou menos a mesma idade psicológica de Bunny filho – na terceira parte do livro, ficará óbvio que também Bunny avô jamais saiu dessa gaiola. Os três Bunnys são o mesmo personagem, que patina pelo mundo sem progredir nem evoluir ao longo da linha do tempo. O retrato masculino que Cave pinta é desolador. Tarde demais, o Bunny do meio perceberá que seus dias no mundo foram povoados por um “desfile fervilhante de mulheres infelizes, ofendidas, magoadas e humilhadas”.
Trevas à parte, Nick Cave é um músico popular, e sua compreensão do que é o pop dá um colorido todo especial a A Morte de Billy Munro. O protagonista se esmera em expor, no decorrer das páginas, suas obsessões sexuais por (nessa ordem) Avril Lavigne, Kylie Minogue, Britney Spears, Beyoncé, Pamela Anderson, Madonna, Kate Moss, Naomi Campbell – especialmente pelas duas primeiras, que se tornam quase personagens da trama, tratadas como objetos baratos de consumo por Bunny II. A australiana Kylie, por sinal, dividiu com o autor os vocais de "Where the Wild Roses Grow", em Murder Ballads. Na canção, Nick corteja Kylie e a assassina a pedradas no terceiro dia, mas essa é uma outra história.
Entre tantas musas, aparece Celine Dion, como ícone ao contrário: conta-se a história de um garanhão que se tornou impotente depois de ir a um show da gélida cantora canadense. O irônico faro pop de Cave aparece, também, quando Bunny empurra um banho de rosa marroquina a um grupo de freguesas, argumentando que é “100% óleos vegetais e fragrância natural… romântico, tradicional, sensual… puro Barry White engarrafado”. A Morte de Bunny Munro é puro Nick Cave engarrafado.
Até pelo apelo pop, seu modo de abordar sexo, violência e a dinâmica bélica entre masculino e feminino guarda algo em comum com Quentin Tarantino. Mas não é só isso, ainda bem. A certa altura, o abobado protagonista compreende a “raiva violenta e tórrida” que sente pela esposa morta, provavelmente por todas as mulheres. A grande virtude do livro é mesmo pintar um retrato desolador – e transparente – do sexo masculino, e desnudar a montanha de dor e infelicidade que há por trás da condição masculina e da misoginia.
E Cave, hoje com 52 anos, reserva ainda um momento de humor e candura à última linha dos agradecimentos, na última página do livro: “Também gostaria de agradecer – e pedir desculpas – a Kylie Minogue e a Avril Lavigne, com todo o amor e respeito”. Vez por outra, o rock’n’roll tem o condão de envelhecer como vinho.
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