domingo, abril 01, 2012

Millôr: do riso e da amargura. Crônica deste fim de semana no Globo



 Não posso falar de Millôr Fernandes  como amigo, igual a muitos colegas  que estão compondo homenagens,  sobretudo aqueles um pouco mais  velhos. Ironicamente, aliás, cresci ouvindo cobras  e lagartos a seu respeito. Entes próximos  e amados diziam que ele era inimigo da família  e que chamara publicamente meu tio de “Adolpho  Bloch Hitler”. 
Uma piada eticamente bem  arriscada para se fazer com um judeu, ainda  mais um judeu russo. Em sua tirania (alternada  com humildade extremada) Adolpho estava
mais para um híbrido de “Pedro, o Grande”  com Aleksei Ivánovitch, o protagonista de “O  jogador”, de Dostoievski.
   Mas fazer o quê?, ele se chamava Adolpho  (adaptação de Avram, seu nome de imigrante),  o que dava o mote: como é que Millôr ia perder  o trocadilho, ele que era o rei dos jogos de palavras  e que, mesmo com os amigos e até nos  mais rasgados elogios jamais perdia a oportunidade  de espinafrar o próximo?
Além disso, toda semana meu pai trazia o  “Pasquim”. Sejamos francos: não havia quem  não lesse o Millôr, fruindo do sabor agridoce da admiração temperada de mágoa.
   Claro que, à medida que começamos a nos  afastar da cartilha estrita da família (quando isso  é possível) passamos a fazer um juízo próprio  das pessoas, e, no meu caso, este foi se  construindo não através da relação pessoal, da  inflamação ideológica ou das birras tribais, mas do gosto pela obra. Mal completara 15  anos e, na onda da abertura lenta, gradual e irrestrita  e do fim da censura, assisti a “Os órfãos  de Jânio” no Teatro dos Quatro.
   Chorei com o retrato que Millôr ali fazia  das gerações que precederam a minha, cujos  feitos, heroicos ou não — fechado que estava no casulo familiar — eu não tinha a mais vaga consciência, a não ser por uns laivos em conversas cifradas com o Cony, um luminar que frequentava a casa.
   Chorei também com a “Marcha da Quartafeira de Cinzas”, de Vinicius e Lyra, que coroava o final da peça com a forte melancolia de suas palavras e aquele arrastão em tom menor, afeito às marchas-rancho. Cheio de fôlego juvenil, eu descobria no teatro tudo ao mesmo tempo: Millôr, Vianninha, Brecht, Ionesco. Os originais que xerocava na SBAT eram a minha bíblia de um Brasil desconhecido que mofava nos porões.
   Passei a ler tudo de Millôr e em pouco tempo consegui ficar próximo o suficiente (na qualidade de público) para sacar que seu humor, nos cartuns, no frasismo, nos desenhos, no teatro, no anedotário e nas sátiras era crivado por uma forte amargura da qual ninguém, nem ele,  escapava. É a mesma amargura que está em
sua expressão facial, semítica, aquele tipo de desgosto que ao mesmo tempo parece um sorriso.  Seria judaico se não fosse mouro.
   Ele mesmo captou esta particularidade fisionômica na sua autocaricatura, transformada em marca pictórica do seu pensamento, dublê
gráfico, porta-voz de si mesmo. Isso é que era bom em Millôr: não se faz omelete
sem quebrar ovos. Não se faz diferença apostando no senso comum, no aplauso de todos.
Se o veneno existe, ele está espalhado na corrente psicossocial da civilização e precisa ser destilado. Do contrário morreremos todos intoxicados pela mentira a respeito da nobreza de nossas almas e de sermos todos, sempre, bons e ilibados cidadãos.
   Os que assumem o papel de purgar o mal comum levam muito chumbo mas, se sobrevivem à linha de tiro, terminam por abrir espaços absolutamente novos, singulares, que, uma vez inaugurados, permanecem, como castelos de uma areia quase imune à arrebentação do mar e resistentes ao tempo e ao vento. Ao passo
que os arautos do óbvio-obscuro desaparecem com a primeira brisa.
   Só estive com Millôr pessoalmente em princípios dos anos 2000, num único jantar. Uma vez confirmado o encontro, passei momentos de ansiedade, de medo e até de culpa. Na hora H, com vinho e cavaquinha à mesa do hoje extinto Gibo, na Praça General Osório, ele me tratou com extrema cordialidade, mas me sacaneou um bocadinho, o que me honrou.
   Contou todo tipo de histórias, sorriu torto várias vezes e riu um riso esganado, gutural, que, por uma arrepiante ironia, lembrou-me o riso “mudo” de Adolpho, que era um choro. Os olhos de Millôr brilhavam, daquele brilho dos que, escaldados com a tal da amargura, amam a vida só pelo fato de ela existir e de proporcionar a chance de constatar a desgraceira que é.
   Passaram-se dez anos deste encontro. Foi a última vez que vi Millôr. Sua partida trouxe o outono, que tem muito da sua aquarela, triste e risonha, com folhas cadentes em tom pastel

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