domingo, abril 01, 2012

Flores secas do cerrado

Conto de Milton Hatoum


Ilustração: Ramon Muniz
Há pessoas que falam menos que um papagaio, seres silenciosos ou de poucas palavras, mas em Brasília até as paredes emitem estalos suspeitos. Silêncio, mesmo, só na lonjura, no cerrado original. Na parede do quarto do hotel observo um origami com dobras geométricas. Da janela posso ver árvores desfolhadas com galhos retorcidos, o gramado marrom, o horizonte queimado pela seca de setembro. No centro da paisagem calcinada, a praça dos Três Poderes… Dizem que a nova Biblioteca de Brasília foi inaugurada sem livros. Será uma metáfora da cabeça de tantos políticos? Ou do tempo em que vivemos?
A arrumadeira do hotel é uma mulher de Minas; o recepcionista, um rapaz pernambucano, um dos ajudantes do chef de cozinha, baiano. O Brasil todo está aqui, e esse Brasil de verdade parece ausente nas esculturas côncava e convexa do Congresso Nacional. Cada vez que entro no elevador minha cabeça se enche de sons de pássaros. Cantam e não aparecem: onde estão? Não há pássaros nas imagens do Pantanal e da Amazônia coladas nas paredes do elevador panorâmico. Mas quando subo ou desço dezessete andares, sou obrigado a ouvir trinados metálicos na caixa de vidro e aço. Lembro do conto Paolo Uccelo, do escritor francês Marcel Schwob. O genial artista florentino do Quattrocento era obcecado por pássaros, pela geometria e perspectiva. Uccello queria entender o mundo (o espaço) em profundidade. As paredes de seu ateliê eram cobertas de pássaros pintados por Uccello, daí seu apelido e o título do conto de Schwob. Mas a vida não é imaginária, nem sempre é, sobretudo quando o elevador pára no térreo e o cronista se senta à mesa do café da manhã e ouve pedaços de conversas indiscretas:
— Volto na próxima semana por causa do resultado da licitação…
— Acertei com o senador, só falta…
— Consegui marcar uma audiência, agora vai ser mais fácil…
A mulher de Minas ganha menos de dois salários mínimos e mora em Samambaia, uma das favelas do Distrito Federal. Na época em que morei em Brasília ninguém dizia favela, e sim cidade-satélite. Esse eufemismo urbano ainda persiste, mas tende a desaparecer e sumir de vez. O plano piloto da nova capital foi construído sob o signo da miséria brasileira: os candangos pobres, operários, artesãos e desempregados migraram de todos os quadrantes e foram morar na periferia da cidade-monumento projetada por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Como seria o Brasil ou Brasília se não houvesse existido o golpe militar e vinte e cinco anos de ditadura? Sem essa noite longa e infame, o país teria avançado socialmente? Haveria tanta miséria? A educação pública de qualidade — um sonho obstinado de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro — seria melhor? A interrupção da democracia foi um desastre, o toque militar de recolher, um retrocesso.
O ajudante do chef de cozinha ganha mais do que a mulher de Minas e mora em Sobradinho.
— Se eu não comesse no hotel, passaria fome. Meus dois meninos são filhos da Capital.
Gêmeos da era Collor, vieram ao mundo durante um pesadelo político. Sobradinho. Nunca me esqueci das cidades-satélites, para aonde íamos pichar muros com slogans contra a censura e a brutalidade. Por onde andam meus amigos daquela época? Zé Wilson, o Cuca, viajou ainda jovem para o outro lado do espelho, nem me deu adeus. Ainda me lembro do entusiasmo com que comentava os clássicos; lia tudo e nos olhava por trás de lentes grossas no rosto de criança. Chico dos Anjos, filho do escritor Cyro dos Anjos, também partiu antes do tempo. Disse ao Chico que O amanuense Belmiro era um belo romance. Como os mineiros escrevem bem, de dar inveja, acrescentei. Percebi uma ponta de orgulho no olhar do meu amigo. Depois ele deu uma gargalhada. O Chico ria quando todos ficavam sérios, não era tempo de risadas, mas ele tinha humor, e um astral na lua.
Nada era muito asséptico em Brasília, uma cidade embrionária, capital pequena. E vigiada. Poucos homens usavam terno e gravata, a maioria ostentava farda e metais, uma poeira vermelha cobria as superquadras, manchava as fachadas dos ministérios, as mãos de concreto armado, mãos abertas da Catedral então inacabada. A poeira barrenta manchava o Palácio do Planalto. O outro, da Alvorada, também avermelhava. Barro subversivo, os milicos diziam ou deviam dizer. Barro maldito. Até o barro primordial do cerrado era comunista. O setor hoteleiro era acanhado, lembro das duas noites em que dormi no hotel das Nações, noites de angústia, meu coração moído de saudades do Norte. Depois fui morar num dos quartos de uma casa na Avenida W-3 Sul. Aluguel barato de uma pensão informal. Uma família de negros: o pai era um mestre de obras baiano, candango de primeira mão. Hotel das Nações, inaugurado em 1962. Que belo nome para uma nação esperançosa, antes do desespero. As casas da W-3 já estão desfiguradas. Tinham um pátio nos fundos, que podia ser um quintal. Duas crianças brincavam de cabra-cega ao redor da pitangueira, e um dia ganhei de uma delas um punhado de frutas e comecei a gostar de Brasília. Agora os pátios foram cobertos por puxadinhos, ocupados por quartos amontoados, coisa de cortiço. As famílias cresceram, a renda caiu, os proprietários alugam os fundos da casa. Nem Brasília, planejada e construída com capricho, resistiu ao caos urbano-arquitetônico. A miséria e suas favelas cercam os três poderes da república, o medo e a violência de ontem voltaram com outra feição. Chico dos Anjos, Cuca, vocês não viram isso. João Luiz Lafetá, um crítico fino e sofisticado, você morou em Brasília naquela época e também partiu sem ver o país subtraído de uma esperança teimosa, tão brasileira. João Alexandre Barbosa, outro amigo, crítico dos mais eruditos, também nos deixou. Ele pediu demissão da Universidade de Brasília quando dezenas de professores foram expulsos dessa instituição no fim da década de 1960. Ele continuou sua carreira docente na USP, mas a UnB resistiu, sobreviveu. Penso em vocês enquanto escuto trinados metálicos de pássaros ausentes. Dezessete andares em trinta segundos. Melhor caminhar a esmo, rever Brasília no escuro, de madrugada. Saio da jaula de aço e vidro e vejo na recepção duas mulheres falsamente louras que conversam com lobistas e sentam em poltronas forradas de couro; elas pedem uísque, talvez faturem por noite o que a mulher de Minas ganha por mês, e o parceiro lobista ganhará mais do que todas as prostitutas e outras mulheres trabalhadoras ganhariam em dez anos de labuta.
O origami na parede não me diz nada, é mais um ornato num quarto de hotel que poderia estar nas Filipinas, na Holanda ou África do Sul. Faço uma viagem à deriva pelo cerrado, quero encontrar um lugar do passado, o Poço Azul, onde me refugiava do medo e dos homens. É uma viagem no tempo. Aqui há pássaros de verdade, posso encontrar uma trégua para o pesadelo, abraçar o sono da solidão e a memória de um desejo apagado por décadas. A paisagem é bela e áspera: árvores anãs com galhos retorcidos, braços tortos de seres vegetais, trágicos. Aqui o passado não lanha meu corpo nem minha alma, posso colher flores secas do cerrado e escrever esta crônica de amor a uma cidade que não sai de mim.

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