MANOEL ANTÔNIO, ESPOSA, FILHOS E NETOS - NATAL DE 1972
Jair Eloi de Souza (*)
Grassava a estação outonal da era
cinquenta. Precisamente seu último ano, 1959. O sertanejo, estraçalhado pela
travessia da grande seca do ano anterior, perdera seus gados, criações, seus
haveres, restando minguados teréns para um lento e difícil recomeço. Havia uma
esperança vinda das bandas do Piauí. Chuvadas caíam no semiárido desse Estado e
já atingiam o noroeste do Ceará. A quadra chuvosa nos sertões do Seridó era uma
questão de tempo. E assim se fez. Os povos do cinzento da Ribeira meã do
Piranhas já se antecipavam, quebrando os batumes das lagoas, destorroando-os
para o plantio do arroz. Os gringos[1] já
atendiam seus fregueses com o caroço do algodão mocó para a semeadura
renovadora dos algodoais e despachavam o crédito para a compra do algodão na
folha[2].
Eis que numa tarde, em mês de Carnaval,
nevoeiros esparsos se agregaram e, num toque de mágica, redemoinhos
desembestados prenunciaram chuvas rápidas. Telhas em cumeeiras soltas
espatifaram-se no chão, para assombração e alegria dos povos daqueles Sertões
do Seridó. Começava ali um decênio mais dadivoso em invernada até o ano de
l969, pois que l970 revelou-se seca recrudescente e de penosa travessia.
Naquele ano do pós-seca, l959, nos preparos dos campos de algodão, medidos em
correntes, conheci Manoelzinho do velho Manoel Antônio. Manco no cênico, brioso
e inteligente nos quadrantes da faina agropastoril, em que reunia rapidez nos
cálculos, na aritmética, regra de três, proporção e ilustrado permeio na
gramática e leitura. Inteligência rara, cubava as áreas no olho e comprovava na
prática. Raramente errava.
Um ser de múltiplas aptidões. Sua
deficiência somática gerava a exuberância de desenvoltura no trato com qualquer
empreitada que lhe fosse confiada. No transcorrer dos mutirões de semeadura, de
limpa, de construção de açude em couro de boi, tinha leveza de antílope nas
planícies dos descampados do tempo. Homem de traquejo junto ao rebanho, naquilo
que dizia respeito à vacinação, aplicação de medicamentos, ferra de gado,
sinalização da miunça. Seu pai, o generoso e incansável Manoel Antônio, tinha-o
como um gerente. Nos tempos de hoje, um executivo de qualquer empresa do agronegócio.
Manoelzinho figura na galeria dos
melhores mestres-escolas nas terras e cercanias do Riachão de Baixo, Flores,
Braz, Assembleia dos Bau, Amparo. Onde também tivemos o saudoso Professor
Bernardo, Dona Evilásia, Bárbara Rodrigues. Quão orgulho de ter sido seu aluno,
mesmo já matriculado na escola pública. Suas aulas eram um baita reforço,
principalmente na hora vesperal de prestar o exame de admissão com o saudoso
João Bangu, na freguesia de Santana. Dinâmica da sabatina coletiva semanal, o
famoso argumento, que tinha a
presença da intimidadora palmatória, distribuindo quinau[3], geralmente, na quinta-feira à tarde.
Meu avô, o velho matuto comboieiro
contador de história, Chico Eloi, dizia aos quatro cantos do mundo: O aleijado de compadre Mané Antônio é um dos
homens mais inteligentes que conheci na face da terra. Dançarino, gostava
de frequentar os toques[4], não
havia mistério para desfilar com cabrocha em som de um xote jineteado. A ciência era tomar a primeira talagada de
aguardente ou queimado de conhaque de alcatrão São João da Barra. Manoelzinho é
desses personagens que talhou as adversidades de sua época, foi doutor em seu
feudo rurícola, padrão de raciocínio e reflexão. Puxador de incelências[5] que
varava as noites, de quadrilhas, prosador jocoso em debulhamento de feijão. E,
para não esquecer nem fugir à regra, era um senhor ator quando comandava as
zombarias e encenações na Semana Santa, na serração e malhação do velho
traidor, o Judas Iscariotes.
Manoelzinho era meu parente, pois,
sendo neto do incansável Caboclo Antônio, uma saga honrada que vivera no coice
da burrarada e na faina agropastoril, tendo este entre suas esposas duas irmãs
(em razão de falecimentos), primas do meu avô. Era Manoelzinho casado com Inês,
também minha parente, e gerara ao lado desta uma prole exuberante, com os quais
fui colega de desasnamento. Sem exagero, esse personagem tem lenho para merecer
dos escribas telúricos uma obra completa, pois marcara época em nossa Jardim.
Ainda é outono em lua minguante/ano
2012.
(*) Professor
de Direito e escriba da tenda sertaneja.
[1]
Gringos: Ingleses que possuíam usinas de beneficiamentos de algodão mocó e
monopolizavam o comércio. Quando configurada a quadra chuvosa, já adiantavam
empréstimos sem cobrança de juros aos seus intermediários nas terras do Seridó.
[2]
Vender o algodão na folha; adiantamento de certa quantia na estação da limpa e
cultivo, para ser deduzida na entrega da safra, a partir da lua setembrina.
[3]
Quinau: ato ou efeito de corrigir, corretivo, dar lição de conhecimento no
colega.
[4]
Toques: assim se denomina antigamente o forró-pé-de-serra, samba puxado a
concertina ou fole de oito baixos, igualzinho ao do velho Januário, tão
decantado pelo seu filho Luiz Gonzaga.
[5]
Incelências ou excelências: cantigas de velório em uníssono. Sem instrumento musical.
Fonte: Blog de Alcimar
jair gostaria de falar com vc sobre esse mestre escola...meu email e Edileuzzafernandes@hotmail.com
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