A gente mantém uma relação assim: ela vem vindo pelo corredor, lenta e densa, queimando o ar, e eu vou ficando sem graça.
Nanda Barreto
Mulher de Frente, desenho a caneta-tinteiro de Portinari de 1941 |
Já da primeira vez, notei que ela vinha acarretada de mágoas no peito e uma história estranha na garganta. A testa retesada de quem não sabe mais o que fazer com a dor. A dor de quem se curvou. O corpo curvado de amor retido. De medo de viver. Um balançar inseguro, típico de quem não vai e não faz se não souber pra onde e o porquê. E foi dar logo de cara comigo, que adoro subverter as pequenas estruturas do dia a dia. Muita sorte ou azar.
Pouco importa. Tanto faz se ela me receia, porque sei que é docemente falsa a sua autossuficiência. E eu subverto. Me desfaço de conceitos para chegar mais perto dela. Esta mulher acaba comigo. Há dois meses que não durmo. Ela fica cravada na minha retina. Tenho mil versões dela na minha cabeça. Ela de biquíni, ela de paletó, ela de jardineira, duas dela, duas dela juntas na cama, ela, ela, ela.
A gente mantém uma relação assim: ela vem vindo pelo corredor, lenta e densa, queimando o ar, e eu vou ficando sem graça. Aí ela chega mais perto, num andar para lá de hesitante, e quando passa por mim diz “oi”. Um “oi” tímido, suave, murmurado. Deus! Que “oi” esta mulher tem! Aí eu respondo, “oi”, embasbacado. Todos os dias digo que de hoje não passa. Que dou um jeito de me avizinhar do seu pescoço. Que descubro que negócio é esse que altera todo o movimento dela. O andar dela. O rebolado dela. Ela.
Imagino os cabelos dela brincando no meu rosto. Que rosto! E o gosto? Quero experimentar o gosto de mulher que ela tem. Fantasio ela de calça de moletom cinza, camiseta azul, meias brancas e chinelos havaianas verdes, de manhã cedinho, bebendo leite ou café na minha cozinha. Ela tem um mistério, uma coisa assim encravada na alma, sabe? E eu sei que parece atrevimento, loucura ou petulância mesmo, mas acho que posso fazê-la sorrir mais largo, mais forte, mais sincero.
Todos os dias espero por ela. Busco disfarçar para que não desconfiem, mas não posso mais. Não suporto mais. Tenho bebido muito, embora já não saia mais à noite. Consegui uma foto dela, de minissaia e blusa preta numa festinha de aniversário da repartição. Bebo em casa sozinho e me entusiasmo com as mãos. Extirpo de mim meu desejo por ela. Não posso mais agir assim, sei bem. Ela de biquíni, ela de paletó, ela de jardineira, duas dela, ela, ela, ela.
Me sinto um pouco rústico por desejá-la e não dividir isso com ela. Gosto tanto das suas coxas. Ficaria o dia inteiro ajoelhado beijando as coxas dela enquanto ela trabalha, enquanto ela estuda, enquanto ela fala ao telefone. Era lá que eu gostaria de estar agora, entre suas coxas quentes e firmes. Coxas cor de castanha.
Tarde destas, quando ela veio, veio de um jeito diferente daquele que ela sempre vinha. Me lançou um olhar penitente e tinha a boca entreaberta. Eu fiquei tenso com o que ela diria. Muita língua e saliva, eu pensava, enquanto meu corpo antecipava o suor. Meu corpo todo propenso ao corpo dela, vontade súbita de tirar a roupa e amá-la ali mesmo, no chão do corredor.
Ela vinha vindo daquele jeito que eu nunca vi ela vir. Jogou para cima de mim um olhar de quem arrisca toda dignidade numa confissão e disse “oi, tudo bem”. Ela meu perguntou se estava “tudo bem”! Quase não acreditei. Então, encorajado pela nossa relação de compreensão mútua, baseada no diálogo, eu respondi “sim, e com você?”. Ela respondeu, eu emendei, ela rebateu, eu espirrei.
Um, três, quatro, vinte, trinta e dois espirros. Um atrás do outro. Tentei trancar todos. Dizem que a velocidade do espirro pode chegar a cento e sessenta quilômetros por hora e que ao tampar o nariz a pressão é tanta que pode expulsar os olhos, ou arrombar o tímpano ou romper uma veia importante e aí, babaus, já era.
Mas eu arriscaria a vida por ela outra vez se fosse preciso. E então, as mulheres! Meu Deus! As mulheres. Quem vai entendê-las? Então ela me lançou um sorriso muito leve e, antes de chegar mais perto do meu ouvido, exatamente naquela proximidade que deixa o corpo sentindo o calor um do outro, o hálito um do outro, então ela disse “posso te contar um segredo?”.
E me segredou coisas sobre aquele corpo hesitante, aquele corpo curvado e, para meu sobressalto, um corpo praticamente sem dor, para não dizer um corpo de pleno prazer. Ela se enredou no meu ouvido e eu tremi. Chegou mais perto ainda. Me olhou de um jeito de quem arrisca toda a dignidade numa confissão e me contou coisas que eu, à noite, sozinho e bêbado no meu quarto, jamais pude imaginar.
Nanda Barreto é jornalista e escritora
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