domingo, maio 06, 2012

Sêneca, Vinicius e o mundo

Por José Castello 
          Converso com uma querida amiga, Babi Borghese, a respeito da fragmentação que caracteriza e oprime o pensamento em nossos dias. Lembra-me Babi que talvez não pudesse ser de outra maneira, já que vivemos em um mundo "wireless", isto é, sem fios. No entanto, avançando um pouco mais, recordamos dos fios secretos que sustentam essa rede que, na aparência, é pura dispersão. E onde mais estariam esse fios ocultos senão na arte?
          Volta e meia, retorno às "Cartas a Lucílio", de Sêneca. Viajando através delas, encontro a história de Lúcio Pisão, o chefe de polícia da Roma Antiga que, depois de ser nomeado para o cargo, nunca mais deixou de embriagar-se. Não, não farei aqui uma apologia do alcoolismo, mas dos vínculos secretos que sustentam coisas aparentemente dispersas. Pisão passava a maior parte das noites em festins. Escreve Sêneca: "No entanto, cumpriu sempre com a maior diligência o seu dever de manter a cidade em ordem". Entusiasmado, Augusto nomeou-o governador da Trácia. Prossegue o filósofo romano: " A experiência de Tibério com este Pisão dado à bebida foi mesmo tão bem sucedida que, imagino eu, foi essa a causa de ele nomear para governador de Roma a Cosso _ homem severo, de bom caráter, mas de tal modo embebido em vinho que uma vez, quando saiu de um banquete para participar no Senado, se deixou dormir em plena sessão, e teve de ser levado de lá sem dar acordo de si".
          Pisão, Corso: alcoólatras? Se a palavra realmente cabe para pensar aa Roma Antiga, provavelmente sim. Mas, para além do vício, um fio oculto ("wireless") os ligava às coisas do mundo e os transformou em profissionais exemplares. Inevitável, aqui, lembrar de Vinicius de Moraes, o poeta da paixão, para quem o uísque, de tão amoroso, era "o cão engarrafado". A lenda conta que, no período em que foi cônsul em Los Angeles, o poeta teve que representar o governo brasileiro no funeral de um oficial morto na osta americana. Foi o escolhido para fazer o discurso fúnebre. À beira do túmulo, embriagado não só pelas palavras, e não fosse o socorro dos ajudantes de ordem, teria desabado sobre o caixão. Uma versão mais radical da mesma lenda conta que, de fato, despencou. A lenda vale mais que o fato real.
          Vinicius: o gosto pelo álcool _ que corta nossos fios com a realidade _ nunca o impediu de ser um grande poeta. Insisto: não faço aqui propaganda do álcool. Nunca bebi muito, mas recentemente tomei a decisão radical de parar de beber. Portanto, ninguém pode me acusar de fazer o que não faço. Falo da embriaguez porque ela é uma útil imagem para a cisão entre o sujeito e a realidade. Duas ou três taças de vinho, e pronto: os fios que nos ligam à dura realidade (pelo menos nós pensamos assim) estão rompidos. Devem se romper mesmo, eu admito. No entanto, fios invisíveis, pelo menos no caso de homens notáveis como Pisão, Corso e Vinicius, continuam a agir. Continuam a nos sustentar.
         Não sei se eu também me deixei embriagar pelo paralelo, que no fim das contas talvez não seja tão paralelo assim, não passe de uma medíocre miragem. Mas o que tento dizer? Justamente o que minha amiga Babi me ajudou a enxergar: que mesmo em um mundo despedaçado, em um mundo que se fragmenta e se dilui, alguma coisa _ a arte, a literatura _ continua a servir de liga (de fio). Nos momentos de maior dispersão, nos momentos em que você realmente se sentir perdido e despedaçado, pegue um bom romance, ou um bom poema, e leia. E verá que linhas vigorosas _ ainda que imaginárias _ o manterão, apesar de tudo, conectado ao real. Se quiser, beba _ moderadamente, como se aconselha sempre. Mas só a literatura lhe devolverá a coesão.

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