Autor bissexto, memorialista singular, ourives da
narrativa: Pedro Nava tem seu lugar reservado na história da literatura
brasileira como muitos em um só.
Pesquisa recente sobre o índice de leitura do Brasil dá conta de um
cenário bastante sombrio para um país que se imagina numa espiral
incontestável do sucesso, certamente alavancado pelo lance de dados da
economia mundial, que, malgrado o fato de não se recuperar nos países
centrais, nas nações em desenvolvimento (ao menos por enquanto) tem
prometido um futuro brilhante de desenvolvimento socioeconômico.
Todavia, o Brasil não conhece o Brasil. E prova maior disso, para
retomar a pesquisa citada acima, é a constatação de que este é um país
que não lê. Ou, na melhor das hipóteses, lê pouco e lê mal. Tudo isso a
despeito de as editoras comemorarem as listas dos mais vendidos; de os
escritores se refestelarem nos prêmios e nas festas literárias; não
obstante as oficinas de escritores e os cursos de letras que abundam nas
casas de cultura e adjacências.
Ainda assim, o Brasil foi o berço de Pedro Nava.
De forma semelhante, este mesmo Brasil é acusado, dia sim e outro
também, de não ter memória. Talvez sejam os casos de corrupção, que
tornam toda crônica política mais absurda que qualquer realismo mágico.
Ou, ainda, talvez seja culpa de certa visão cínica que marca os
formadores de opinião, estes que, penas de aluguel, a todo momento
decidem reescrever as interpretações e buscar um novo efeito de sentido
para a história recente do país. O Brasil não conhece o Brasil, vale a
pena reiterar. O Brasil se esquece do Brasil, é justo postular.
Portanto, a acusação, legítima e corriqueira, exige algum tipo de
reparação. A resposta, todavia, não poderia ser mais simbólica. Em vez
de reação efetiva à idéia da perda do registro histórico-cultural do
país, nota-se um estado de inanição por parte dos intelectuais, que
refletem cada vez mais para seus pares e seus projetos particulares.
Todavia, foi nesse mesmo ambiente, quiçá ainda mais precário, que surgiu Pedro Nava.
Dono de um dos textos mais elaborados da prosa brasileira, Pedro Nava, com efeito, permanece como um autor sui generis
na literatura brasileira. Em verdade, em um desses estudos acadêmicos
alguém já deve ter especulado o fato de que, em Minas Gerais, a
literatura brasileira parece viver um tempo diferenciado. Porque é nessa
região que alguns dos principais prosadores do país, de Cyro dos Anjos a
Guimarães Rosa, passando por Otto Lara Resende e Luiz Vilela, se
desenvolveram como expoentes do texto literário. Dito de outra maneira,
alguém ainda há de averiguar (se já não o fez) qual é o segredo das
Gerais, terra que legou à nação grandes autores, como Carlos Drummond de
Andrade, cujo centenário se comemora agora em 2012.
E é de Drummond o prefácio que abre o Baú de ossos, livro que a Companhia das Letras acaba de relançar junto a Balão cativo,
respectivamente primeiro e segundo volumes da coleção que reúne o
memorial de Pedro Nava. No texto de abertura do livro, o autor de Alguma poesia recorre
à imagem mais tradicional para descrever a personalidade literária de
Nava: trata-se de um bissexto. Verdade que Drummond menciona a
característica em outra seara das artes, a pintura, mas é correto
assinalar que, também na prosa, Pedro Nava foi considerado um autor
bissexto, isto é, alguém que insistia em publicar de tempos em tempos,
respeitando, talvez, um determinado espaço para a absorção de suas
obras, como que estabelecendo um acabamento formal aos textos, de
maneira a transformá-los na mais perfeita representação de seu projeto
literário. Sobre isso, vale mais uma vez recorrer à imagem que Drummond
propõe acerca de Nava: “a minúcia descritiva e a arguta propriedade
vocabular são recursos para identificar, através de cada pormenor, o
sentido específico da coisa, a ‘alma do negócio’”. Temos aí, em poucas
palavras, o efeito produzido pela literatura de Nava. Em poucas
palavras, a bela composição entre forma e conteúdo.
Com efeito, a despeito dos fartos elogios que os medalhões da
literatura brasileira dispensam a Pedro Nava, é comum assinalar que o
valor da obra desse escritor reside na qualidade textual do autor, algo
que, como sabe quem já frequentou um curso de letras, está absolutamente
ultrapassado — esse tipo de texto cedeu espaço para a lingüística
aplicada e para as disciplinas de leitura e compreensão de textos. Em
que pese a acuidade dessa avaliação acerca do estilo Nava, cumpre
observar que esses dois campos — forma e conteúdo — não estão distantes
na obra do escritor mineiro. Em verdade, é bem possível assinalar que a
forma concede ao texto de Nava uma naturalidade e uma leveza para um
tema assaz complexo, que é, na verdade, uma interpretação sobre o
Brasil. Suas memórias, nesse sentido, servem como um modelo de invenção
literária conjugada com o encadeamento da memória, de tal maneira que
ambos os pontos funcionam em continuidade.
Um indício pode ser visto já no primeiro capítulo de Baú de ossos, livro que, não por acaso, começa com um traço inconfundível da mineiridade: “Eu sou um pobre homem do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais”. Ou seja, de um lado, a aparente modéstia da parte a da
frase (“eu sou um pobre homem”); de outro, a menção à terra que serve
de referência para a sua narrativa: (“do Caminho Novo das Minas dos
Matos Gerais”). Que não haja equívoco aqui: o ser mineiro aqui está na
afirmação que, em tese, não possui qualquer gravidade ou afirmação de
espírito. Ainda assim, basta olhar a referência acima e lá está a alusão
a Eça de Queirós. Ou, dito de outra forma, já no cartão de visitas, eis
um autor que conhece, inclusive, a correspondência do escritor
português.
Em seguida, ainda no mesmo capítulo, o leitor tem à sua disposição
todo um repertório de imagens, cenas, relatos e referências envolvidas
numa linguagem fluida, como também ressaltou o “poeta federal”. Chama a
atenção, aqui, a capacidade de Nava de dar continuidade ao texto como se
fosse uma longa conversa. É possível afirmar, aliás, que, como poucos
escritores, em Pedro Nava o termo prosa não é apenas a designação de uma
forma. É, também, a maneira como seu texto flui, numa longa conversa
com o leitor. Alguém poderá afirmar que também os (bons) cronistas de
jornal contam com esse mérito, de maneira que anunciar esse detalhe como
virtude é banal. O argumento seria correto e preciso, não fosse pelo
fato de que o memorialista não fica circunscrito à narrativa do
cotidiano, por mais banal que suas histórias soem ao ouvido do leitor.
Trata-se, antes, de uma composição complexa, uma vez que lida não com as
informações da semana, mas com os acontecimentos de uma vida. Foi, a
propósito, a filósofa alemã Hannah Arendt quem certa feita escreveu
acerca da diferença entre cultura e entretenimento: “a cultura
relaciona-se com objetos e é um fenômeno do mundo; o entretenimento
relaciona-se com as pessoas e é um fenômeno da vida”. Assim, regida por
uma “ordem de mundo” que é a da sociedade do espetáculo, a prosa dos
cronistas da imprensa nacional se refestela no espetáculo do
entretenimento, conversando sobre pessoas, celebridades, costumes — sem
mencionar as falsas polêmicas dos suplementos culturais. De sua parte, a
escrita de Nava se posiciona na plenitude do universo da cultura.
Cronista do Brasil
Se a crônica como gênero literário parece ter sido efetivamente
tomada de assalto pelos próceres do jornalismo, a ponto de mesmo os
teóricos da comunicação e os professores de literatura na desafiadora
missão de formar leitores seqüestrarem o gênero, concedendo apenas uma
definição possível a esse texto — a saber: um híbrido entre jornalismo e
literatura, tomando emprestado desta o estilo e daquele o assunto —, é
melhor não pensar nessa definição estanque ao ler Pedro Nava. Isso
porque chamá-lo de cronista, neste caso, é diminuir por demais seu
empreendimento estético, haja vista que não é o autor que tenta se
moldar aos temas abordados, como que deformando o estilo para comportar a
forma. O processo é exatamente inverso. É o tema que se transforma sob
sua carpintaria literária, pois, com sua prosa fluida e sofisticada, o
escritor envolve o leitor num universo íntimo e pessoal, desses que são
capazes de alienar a audiência do mundo sensível que o cerca.
Assim acontece, em Baú de ossos, ao discorrer sobre
sua genealogia, deslocando-se do tempo presente para o século 18,
enumerando toda sorte de referências materiais e imateriais possíveis.
Nota-se, nesse quesito, que Pedro Nava não se deixa levar por uma
espécie de método ou mesmo “recorte” de observação; antes, procura
narrar suas memórias com tamanha argúcia que seria mesmo possível dizer
que ele as (re)inventa como gênero literário. A questão da carpintaria,
já mencionada no parágrafo acima, é essencial para tal impressão. Nesse
primeiro livro de memórias, Nava consegue estabelecer um novo estatuto
para o gênero, graças, em boa parte, ao fato de que o tecido de seu
texto remonta à composição de um romance. Exemplo gritante dessa
aproximação pode ser percebido ao expor suas idéias sobre a relevância
das genealogias:
Não é possível vender um cavalo de corridas ou um cachorro de
raça sem suas genealogias autenticadas. Por que é que havemos de nos
passar, uns aos outros, sem avós, sem ascendentes, sem comprovantes? Ao
menos pelas razões de zootecnia devemos nos conhecer, quando nada para
saber onde casar, como anular e diluir defeitos na descendência ou
acrescentá-la com qualidades e virtudes. Estuda-se assim genealogia,
procurando as razões de valores físicos e de categorias morais. (…) Além
de ser com a finalidade de conhecer o valor-saúde das famílias e, por
extensão, o valor saúde-nacional, há outros motivos que levam aos
estudos genealógicos. Herança. Aparecimento de tesouros. Está no último
caso essa complicada história da herança do barão de Cocais que
revoluciona periodicamente a família Pinto Coelho e leva milhares de
seus membros a reverem os tombos de igrejas, bispados, cartórios, a
papelada do Arquivo Público Mineiro (…).
Se no primeiro livro a preocupação com a dicotomia genealogia/herança é evidente ao longo do texto, em Balão cativo,
a segunda obra das memórias, nota-se a presença destacada do escritor
francês Marcel Proust — detalhe perceptível já na epígrafe do livro na
presente edição da Companhia das Letras. Além do autor de Em busca do tempo perdido,
há ainda Machado de Assis, cuja afinidade eletiva é perceptível também
no quesito estilo. Na apresentação, André Botelho escreve, novamente
ecoando Proust, acerca da idéia de recuperação do tempo perdido. Com
efeito, em Nava, o tempo não apenas é reencontrado, mas também
organizado num vasto mundo de referências e de repertório cultural, que
vai do escritor La Fontaine ao pintor Jean-Baptiste Debret, passando
pelos autores Carlos Drummond de Andrade, Humberto de Campos e Ernest
Hemingway.
Assim, para além da questão do estilo, é curioso observar que Botelho
empresta um tom sociológico na análise da prosa de Pedro Nava. Dessa
forma, é como se o autor reconstruísse os episódios de sua infância e de
sua formação como um retrato falado da época, registrando as filigranas
das relações sociais de um Brasil demasiadamente marcado pelo
patriarcalismo, remontando, portanto, a alguma rigidez nas relações
sociais de um Brasil perdido entre o passado e o presente. Em outras
palavras, nas histórias que compõem os anos de sua formação, vemos, em
paralelo, as marcas determinantes desse espaço sócio-político do país,
sobretudo nas suas estruturas mais simbólicas, como fica evidente na
exposição dos quadros das relações familiares, ora em Juiz de Fora, ora
no Rio de Janeiro.
"Nas
histórias que compõem os anos de sua formação, vemos, em paralelo, as
marcas determinantes desse espaço sócio-político do país."
Erudição
Em que pese a relevância acadêmica apresentada por André
Botelho, o texto de Nava conquista seu próprio espaço sem a necessidade
de paratextos. É o próprio Nava quem estabelece uma (alta) literatura,
recorrendo à sua memória e a uma análise para lá de original para poder
dissertar sobre os temas que ora surgem na sua prosa. Pois é assim, por
exemplo, que o leitor tem acesso às referências de Nava quando este
escreve sobre a questão da sexualidade oriunda de nossa tradição
judaico-cristã. Tomando como base uma leitura bastante peculiar da
criação do mundo, Nava atenta para o fato de que, em poucos dias, já
“estavam criados os símbolos essenciais e o espírito de Freud rolou
sobre a face da Terra”. Em seguida, quem imagina uma exortação
fundamentada em textos sagrados é surpreendido com uma longa
demonstração de conhecimento sobre esse tema transversal da literatura,
como se observa no fragmento a seguir:
Eles desceram pelas idades com sua sinuosa espada de fogo
(saberão eles? Que brandem um símbolo!) querendo expurgar a própria
Bíblia, o obsceno Homero, o torpe Virgílio, o escabroso Dante, o sacanão
do Camões, o safardana do Cervantes, o licencioso Rousseau, o
inconveniente Balzac e, recentemente, toda a fauna representada por
France, Maupassant, Gide, Dreiser, Proust, Apollinaire, Joyce, Lawrence,
Cocteau, Hemingway, Radiguet — em suma, todos que usam o que se
convencionou chamar pensamento ou linguagem não protocolar.
Autor bissexto, memorialista singular, ourives da narrativa: Pedro
Nava tem seu lugar reservado na história da literatura brasileira como
muitos em um só. Ainda assim, o que o torna realmente sui generis
é sua imaginação como autor. E isso se deve à sua erudição refinada.
Tal preparo intelectual está associado à formação de Nava, que, para
além de médico, foi um grande leitor. Foi a partir dessa condição que
ele soube estabelecer um registro biográfico sobre a sua trajetória e
sobre o país que não conhece a si mesmo.