Um filho pré-adolescente pergunta ao pai: “A maconha, que é uma erva natural, é ruim?”. O pai, sem acreditar no questionamento responde: “Lógico que é meu filho, faz mal à saúde. Os negros pobres fumam. Por isso, é proibida”. O garoto, insatisfeito com a resposta evasiva, retruca: “Interessante. A maconha é natural e proibida. Então, por que os sanduíches das redes de fast-food, consumidos pelos brancos ricos, que engordam e fazem muito mal à saúde não são proibidos?”. Sem resposta, o filho retorna ao quarto onde vai pesquisar sobre o tema. O pai, atônito, resmunga e questiona a si mesmo: “Em que tempos estamos?”.
Do diálogo acima extrai-se dois pontos do vista que margeiam o debate acerca da maconha: naturalidade versus proibição. De um lado, o pai afirma que somente negros e pobres fazem uso da erva. Não leva em consideração, porém, o preconceito embutido em seu discurso. O questionador, um filho pré-adolescente, contextualiza o debate expondo que os grandes conglomerados comerciais vendem comida industrializada, que oferecem danos à saúde, e nem por isso são proibidos de lucrar.
O debate em torno deste tema é antigo e divide opiniões. O combate à droga e, consequentemente, ao consumo, foi motivada por uma questão particular. No início do século XX, mexicanos cruzavam as fronteiras dos Estados Unidos, como fazem até hoje, em busca de empregos e melhores condições de trabalho. Eles faziam uso da maconha, que servia como paliativo à proibição de rum que vinha das Bahamas. Henry Anslinger, além de combater o rum passou a criminalizar o consumo da maconha. Ele atribuía que o consumo na América era alimentado pelos imigrantes mexicanos, na maioria pobres e negros.
Por este motivo, estudiosos do tema apontam influências históricas que distorcem o conteúdo que deveria ser amplamente discutido. São elas: social (que é a imposição da soberania branca sobre às demais etnias); religiosa (quando a Igreja Católica subjulgava as manifestações não-cristãs que fazem uso da erva nos rituais); econômicas (o ideal dos grandes grupos tabagistas é patentear o produto, se um dia for legalizado no país) e políticas (que ostentam que a visão de político correto é aquele que segue a doutrina conservadorista). Já os argumentos científicos, defendidos pelos próprios cientistas e usuários da cannabis, são colocados em segundo plano.
Discutir o tema é mexer em feridas sociais históricas. O preconceito do pai, exposto no diálogo com o filho, reflete uma situação comum no Brasil atualmente. Imaginar que os brancos não fazem usto desta droga e não recorrem aos pequenos traficantes, é um engano.
Apesar de ser a droga mais comercializada e consumida no mundo, segundo pesquisas do Departamento de Drogas e Crime das Nações Unidas (UNODC, sigla em inglês), a maconha está dando lugar a substâncias como o crack e, mais recentemente, ao oxy (cuja composição inclui gasolina, querosene, pasta de cocaína e cal).
O que os usuários e pesquisadores da maconha defendem, é a regulamentação e regularização do consumo. “O sonho de qualquer usuário é cultivar sua própria maconha. Eu só compro porque não posso plantar”, afirmou um advogado que faz uso recreativo da erva. Para ele, a maconha não abre portas para novas drogas. “Isso é mito. Eu fumo maconha há 13 anos e jamais fumei crack”, garantiu.
Uma grande empresa produtora de cigarros se adiantou ao que pode ocorrer, ou não, no Brasil e registrou a marca Marley. O nome do produto o faz lembrar algum cantor de reggae? Qualquer semelhança, neste caso, não será mera coincidência. O nome do produto foi questionado pela família do cantor.
Enquanto alguns países se adiantaram na discussão, nenhum sinal de que a descriminalização da droga possa ocorrer no Brasil, embaça as vidraças do Congresso Nacional.
Maioria descobre a droga nos anos da universidade
O primeiro contato com a maconha para a maioria dos usuários consultados para a composição desta reportagem, se deu no universo acadêmico, numa fase que eles consideraram ser de transições, escolhas. O novo ambiente de estudo com perspectivas diversas, oxigenou a curiosidade dos jovens, hoje adultos que culminou com no primeiro cigarro à base de cannabis sativa.
Como consequência ou utilizando a Universidade como viés norteador da abertura para o debate, diversos estudantes se articularam e criaram um movimento nacional, a Marcha da Maconha. Em Natal, o grupo se reúne periodicamente na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). A primeira marcha ocorreu ano passado, durante a reunião da SBPC.
Para Henrique Lopes, um dos organizadores do coletivo “Cannabis Ativa”, o discurso da sociedade em torno da maconha ainda está ligado às questões morais. “É um tema que afeta a sociedade que se prende a justificativas que não se sustentam para contribuir com o processo histórico de construção da marginalização”, defende.
A estudante universitária Isabela Bentes afirma que droga nenhuma escolhe classe social ou etnia. Ela explica que o processo de marginalização da maconha no Brasil ocorreu junto com a umbanda e a capoeira. Tanto ela quanto Henrique acreditam que o proibicionismo só aumenta o consumo. Além disso, dizem que é preciso um processo forte de conscientização na sociedade sobre o uso e abuso de drogas. “A proibição legitima a morte, a violência”, defendem.
Entrevista: Dr. João Menezes - neurocientista e pesquisador da maconha
1. Quais são os argumentos utilizados pelo senhor para defender a legalização e regulamentação da Cannabis no Brasil?
São muitas as razões mas acho que as minhas 10 mais importantes são:
1. Não existem motivos médicos e científicos que justifiquem a proibição para o uso da cannabis por adultos;
2. As substâncias contidas na planta são muito menos perigosas e com menos potencial de causar dependência que outras drogas legalizadas e regulamentadas como tabaco, álcool, e fármacos como ansiolíticos, estimulantes e anti-depressivos apenas para citar alguns. Isto corrige uma incoerência na política de controle de substâncias de abuso;
3. Aproibição produz um mercado negro muito mais deletério que o uso da cannabis. Ou seja, a legalização acarretará na redução do impacto do mercado negro sobre a economia da nação (dinheiro circulante livre de impostos e a inflação por demanda que isto provoca), sobre a corrupção policial e sobre o sistema de saúde (sobrecarregado por causa da violência);
4. Ocontrole do uso da cannabis por menores e do abuso em geral e a possibilidade de oferecer tratamento de saúde para eventuais usos problemáticos, como dependência e síndrome amotivacional, são muito melhor realizados num ambiente de legalização e regulamentação (as pessoas afetadas não correm o risco de serem presas, não fogem das autoridades e não são marginalizadas, e ocomerciante pode ser fiscalizado);
5. Fim assimetria de tratamento entre usuários ricos e pobres e da possibilidade de discriminar negros e pobres em função do uso e posse dedrogas (mais de 60% dos presos no Rio de Janeiro por posse de drogas [2o maior motivo de prisão] são réus primários, destes 90% sem armas e 90% negros ou pardos (números aproximados tirados de memória do estudo de Boiteux et al., 2009);
6. Diminuição do financiamento do crime organizado (cannabis é de longe a droga mais consumida);
7. Geraçãode uma nova rede de atividade industrial-econômica (produção, processamento e industrias associadas como a produção de parafernália, cosméticos, têxtil, combustíveis, etc) e os benefícios que a acompanha como geração de novos empregos regulamentados diretos e indiretos, arrecadação de impostos, etc;
8. Controlede qualidade do produto, aumento da variedade de plantas por exemplo com diminuição do conteúdo de THC e aumento de canabidiol e proteção ao consumidor;
9. Maior facilidade de acesso ao potencial terapêutico do uso medicinal da cannabis;
10. Maior facilidade de realização de pesquisas básico-clínicas sobre a cannabis sativa e seus derivados.
2. Em que a maconha poderia ser utilizada para justificar a liberação?
Não entendi esta pergunta. Em parte, do que eu entendi, acho que está explicado acima. Mas é importante dizer que nada justifica a liberação, não defendo a liberação geral e ilimitada, mas a legalização e a regulamentação. A justificativa para a legalização e regulamentação é o direito à liberdade individual que seres humanos, responsáveis e imputáveis, tem de escolher sobre o que fazer com seu corpo e assumir as responsabilidades por estas escolhas. É muito importante frisar que as pessoas que são a favor da proibição não tem um monopólio de uma posição ética e moral. Muito pelo contrário, as pessoas que defendem a legalização e regulamentação da cannabis e mesmo outras drogas, estãotão ou mais preocupados com o abuso de drogas e a saúde das pessoas do que os proibicionistas. Na verdade se existe uma posição radical, pouco ética e maliciosa é a defesa da proibição, que marginaliza, encarcera e protege pouco as pessoas e a cidadania. Quem defende a legalização é contra o abuso de drogas, e tem no consumidor de drogas e sua família o foco de atenção e cuidado. Diferente dos proibicionistas cujo o foco é apreservação a qualquer custo de um pretenso padrão moral superior, mesmo que isto custe a vida de outrem.
3. Existem grupos de risco que devem evitar o consumo? O senhor poderia detalhar o que pode acontecer com essas pessoas, além da síndrome amotivacional?
Sim,apesar do consumo de cannabis ser entre as substâncias passíveis de abuso, a de menor risco para saúde, não é de modo nenhum livre de perigos. Não existe nada que consumimos livre de perigos, nada, e a maconha não é exceção. O abuso, especialmente o uso crônico, prolongado eem altas doses deve ser sempre evitado, mas algumas pessoas devem evitar qualquer uso. Estas são adolescentes, especialmente aqueles com propensão a esquizofrenia (definida por histórico médico e familiar) e gestantes.
4. Para a ciência, a legalização configura como uma condição sine qua non para o desenvolvimento de pesquisas específicas? Que pesquisas são essas e qual sua aplicabilidade?
Sime não. Não, em relação à pesquisa básica. Muitos experimentos já são realizados, inclusive no Brasil, sobre o sistema canabinóide. Mas a legalização certamente facilitaria em muito a realização de experimentos com a planta in natura e a obtenção de insumos. Principalmente com a produção de diferentes cepas de plantas com diferentes concentrações das substâncias de interesse médico científico, os chamados canabinóides. Certamente ajudaria na produção de novos fármacos a partir da planta. Sim, condição “sine qua non” em relação à pesquisa médica já que permitiria a aplicação de esquemas de tratamento em um cenário médico-hospitalar controlado e passível de ser realizado protocolos de pesquisa rigorosos e com controle de qualidade da substância utilizada.
Totalmente inviável no país atualmente.5. Qual o principal impedimento no Brasil atualmente que impossibilita a legalização da cannabis?
Boa pergunta. Não sei. Se soubesse estaria atuando na retirada deste impedimento. Um fator que acho importante é a percepção errônea da maconha, dos seus usos e de seus efeitos. Esta percepção distorcida é fruto de décadas de desinformação e de preconceitos. É impossível ter um
debate racional se na televisão, jornalistas e apresentadores preconceituosos e desinformados empregam termos como “erva do capirroto” e similares. Além disto, pessoas mais bem informadas mas arraigadas no modelo proibicionista, também propagam esta desinformação porque acreditam que o medo tem uma função protetora. Espalham desinformação e propagam interpretações exageradas dos perigos da maconha porque partem do príncipio que estão protegendo as pessoas quando impedem qualquer uso. Isto quando você considera que suas ações são apenas bem intencionadas. Mas existe também um enorme interesse por trás da proibição, em todos os níveis de poder. Por exemplo, o governo dos Estados Unidos, na década de 80, financiou a guerra contra o Irã,
comprando drogas da guerrilha da Guatemala, no escândalo Irã-contras. Situação impossível se não fosse o regime defendido pelos EUA de proibição internacional de drogas. Muitos médicos psiquiatras tem interesse em manter suas rendosas clínicas de recuperação de drogados, edefendem a internação obrigatória ou por demanda judicial o que garante uma fonte de renda estável. Sem dúvida, os grandes traficantes que tem dinheiro suficiente para comprar fatias do poder tem interesse
na manutenção da proibição. O próprio sistema de segurança pode se beneficiar da proibição pois mantém uma rica fonte de financiamento governamental, e podem mostrar alguma eficiência na prisão de usuários, que são bem mais fáceis de lidar que assaltantes de banco armados, sem contar com a potencial enorme fonte de renda advinda de atividades de extorsão e corrupção que uma minoria do setor de segurança participa. Indústria de bebidas e cigarros também tem razões de temer a legalizaçãoda maconha pela disputa de mercado potencial. Em resumo, a mídia tem umimportante papel na difusão de informação livre de preconceitos e baseadas em fatos, que demonstram o fracasso da política proibicionista de drogas e as alternativas que existem atualmente.
6. Quais as contribuições da maconha para o desenvolvimento de medicamentos? Existem hoje no mercado remédios com o princípio ativo Cannabis?
Éenorme. Há quem diga que esta é a década da cannabis. Os produtos específicos da planta, uma família de compostos terpeno-fenois, conhecidos como canabinóides, atuam sobre um sistema de comunicação entre células do cérebro chamado de sistema endocanabinóide. Hoje em dia, sabemos que este sistema de comunicação celular é o maior e mais complexo dos sistemas de comunicação químicos do cérebro. A maconha tem por volta de 70 a 80 compostos canabinóides e muitos com potencialterapêutico, apresentando propriedades analgésicas, anti-náuseas e anti-eméticas, anti-proliferativas (para o tratamento de câncer), anti-inflamatória e apresentam compostos úteis para induzir aumento do apetite, tratar glaucoma, diminuir ansiedade, e até atuar como anti-psicóticos.
Sim, existem medicamentos à base de cannabis, mas não no Brasil. Tenho ciência de três especificamente, mas podem existir mais formulações disponíveis atualmente que não são do meu
conhecimento. Dois são formas purificadas do tetrahidrocanabinol, o THC,o mais abundante canabinóide da cannabis e o principal responsável pelos seus efeitos psicogênicos. Estas formulações são chamadas de Marinol e Dronabinol. O terceiro medicamento foi recentemente
introduzido na Europa, Canadá e Estados Unidos e é chamado de Sativex. Uma inteligente combinação de 1:1 de THC e canabidiol (CBD), outro canabinóide abundante na cannabis que tem alguns efeitos antagônicos ao THC. Infelizmente, o Brasil não participa desta corrente de desenvolvimento de fármacos por força de sua legislação. Por fim, o próprio uso in natura da planta, seja inalada na forma fumada ou por vaporização, ingerida sólida ou por tinturas alcoólicas, e ainda uma dasformas preferidas de medicação pelos pacientes em países que permitem o
uso medicinal da planta, como o Canadá e alguns estados dos EUA. Provavelmente porque a mistura de canabinóides em doses menores é mais tolerada pelo organismo humano do que as formas purificadas de um único composto canabinóide. Mas isto ainda deve ser objeto de estudo mais
aprofundado.7. A descriminalização reduziria a violência?
Nãoposso afirmar, pois não sou vidente. Mas acredito fortemente que sim, reduziria a violência. Falo isto não por mera opinião mas por constatação do resultado de diversas experiências de descriminalização ou flexibilização da legislação sobre a cannabis em diversos países. A melhor sendo a experiência de Portugal, que descriminalizou a posse de todas as substâncias de abuso, não apenas a cannabis, em 2001. Esta experiência de Portugal foi analisada em um relatório do Instituto Catho, chamado relatório de Grenwald, e demonstra os excelentes resultados desta política sobre a segurança pública e sobre a diminuiçãodo uso de drogas mais “pesadas”, bem como o melhor atendimento de uso problemático de drogas pelo sistema de saúde. Um argumento, às vezes
levantado por proibicionistas sobre a possibilidade de descriminalização levar a um aumento da violência, é o aparente aumento da criminalidade em municípios do norte da Califórnia, onde está concentrada a maior parte da produção e distribuição de maconha para uso medicinal nos Estados Unidos. A Califórnia regulamentou o uso da maconha medicinal desde de 1997. Realmente, alguns municípios registraram um aumento de roubos, assaltos e mesmo assassinatos desde a instituição desta legislação. No entanto, este aumento de criminalidade não esta associadoao uso da droga, mas sim ao grande aumento da renda destes municípios devido a esta nova atividade econômica, e da falta de proteção policial conferida aos produtores e aos locais de distribuição, chamados de dispensários da maconha medicinal. Quando a polícia verificou o efeito benéfico desta atividade econômica sobre estes municípios, antes muito pobres, e passou a proteger a propriedades destes agentes econômicos legalizados, o índice de criminalidade voltou a cair a níveis anteriores. Mas, obviamente o grande impacto sobre a violência gerada pelo trafico, só será obtida pela legalização e regulamentação da
produção e venda da cannabis. A cannabis sendo a substância ilícita mais utilizada no mundo inteiro, inclusive no Brasil (apesar de um baixo índice relativo de uso no país), representa a maior fonte de renda para o crime organizado. A venda da maconha financia a compra de armas e de drogas mais perigosas e mais rentáveis por peso, como o crack e a cocaína. O impacto da maconha sobre a economia do crime pode ser constatado pela recente operação no morro do Alemão, no Rio de Janeiro, no ano passado. Nesta operação foram capturados aproximadamente 60 toneladas de maconha e apenas 500 quilos de cocaína. Esta proporção fala por si mesmo.Com a maconha legalizada, o crime organizado perderia uma fatia considerável de sua renda, provavelmente inviabilizando o comércio de outras drogas e este precisaria mudar suas atividades ilícitas, procurando atividades menos rentáveis e perigosas para o perpetuador como assaltos a banco e congêneres. Dificilmente, o comércio ilegal seria sustentado por adolescentes, impedidos de comprar a droga em um regime de legalização, devido ao pequeno poder de compra destes indivíduos. Além disto, com o comércio legal de cannabis o usuário não seria exposto a drogas mais perigosas na hora da venda, como é comum nos pontos ilegais de vendas de entorpecentes onde cocaína, crack e outras
drogas são oferecidas junto à maconha.8. Como neurologista, o senhor percebe efeitos colaterais provocados pela abstinência? Que efeitos são esses?
Eu não sou neurologista, apesar de ser formado em medicina, optei pela carreira científica e talvez o melhor rótulo seria o de neurocientista.
Não lido diretamente com pacientes, mas estou em contato frequente com médicos e psiquiatras. Apesar da lei nº 11.343 prever a notificação obrigatória de casos de dependência de drogas, isto aparentemente ainda não está totalmente regulamentado e não existe uma fonte de informações
confiáveis em relação à procura de postos de saúde sobre queixas de uso problemático da cannabis. O relato pessoal é de que a procura é muito pequena, quase rara. Mas isto pode ser devido a uma desinformação da população de onde procurar o serviço e mais ainda do medo de ser considerado um criminoso. A dependência da maconha só foi descrita de forma consistente neste século. Esta é descrita como apresentando apenas sintomas subjetivos de abstinência, como irritação, dificuldade para dormir, nervosismo, e vontade de usar a droga, que podem ser resumidos de forma imprecisa como dependência psicológica. Esta síndrome de dependência parece atingir uma pequena proporção de usuários. O risco global de dependência pelo uso de cannabis foi estimada em 9% dos
usuários. Isto se você aceitar os critérios para esta classificação, eu acredito, com bases em outros estudos em um índice muito menor.
Independente da aceitação destes critérios, é importante colocar em perspectiva e comparar este índice com o risco estimado de dependência por outras drogas como para usuários de nicotina 32%, heroína 23%, álcool e cocaína 17%. Sendo que os sintomas de abstinência quando presentes são bem mais leves e de fácil manuseio quando comparado às outras drogas de abuso listadas acima. Talvez possa ser comparável à síndrome de abstinência do tabaco, mas de ocorrência menos frequente que
esta.
9. Por que o senhor defende que os males causados pela maconha são menores dos que os causados pelo álcool e tabaco? O senhor poderia nos enviar estudos comparativos?
Sim, o álcool e o tabaco são drogas muito mais perigosas do que a cannabis, independente de sua maior acessibilidade na sociedade. Ambas as drogas tem potencial de causar dependência muito maior que a cannabis. O álcool é responsável por diversas mortes anualmente por super intoxicação (331 mortes em 2001 por ‘overdose” nos EUA ). É praticamente impossível morrer por overdose com o uso de cannabis, não existe registro de morte provocada apenas pelo uso da cannabis. O potencial oncogênico do tabaco é bem maior que o da cannabis, sendo que esta última pode ser utilizada de maneiras diferentes do que a fumada, por exemplo, ingerida ou por meio de um vaporizador que não produz produtos tóxicos advindos da queima. Existem diversos estudos que fazem a revisão desta comparação, alguns apenas em inglês. Cito dois aqui para referência aos leitores e os envio que tenho aqui comigo. O estudo de Nutt et al., publicado na prestigiosa revista médica Inglesa, Lancet, em 2007 é um excelente começo. Neste estudo, os pesquisadores fazem um esforço para subsidiar uma classificação mais racional quando a periculosidade de diferentes drogas de abuso, ilícitas ou não. O relatório encomendado pela ONU à Fundação Beckley, também é uma ótima fonte de informação atualizada e imparcial sobre a cannabis e sua conclusão final é pela legalização da cannabis e pela denúncia dos tratados internacionais relativos às drogas. Etapa necessária para poder flexibilizar a legislação em relaçãoà cannabis, para não ferir tratados internacionais dos quais o Brasil subscrevente. Por fim, existe um livro relativamente novo chamado:
“Marijuana is safer: so why are we driving people to drink”. Um disponível em português recém traduzido que é intitulado: “Maconha: Mitos e fatos” por Lynn Zimmer e John Morgan, que também aborda esta comparação.
10. Do seu ponto de vista, em quanto tempo a sociedade brasileira estará pronta, sem preconceitos embutidos, para discutir a legalização da maconha?
Nunca, sempre haverá preconceitos embutidos. A discussão sobre a legalização da maconha não deve esperar que uma lucidez desabroche espontaneamente nas pessoas após anos de desinformação. Trata-se de uma questão urgente,só para citar algumas das situações mais imediatas: muitos jovens estão atualmente desnecessariamente encarcerados, com seu futuro tolhido por causa de uma condenação por posse de drogas. Alguns estão cercados pelo crime organizado, rico e financiado, que controla sua vizinhança; existem pacientes que se beneficiariam imediatamente se pudessem ter
acesso à cannabis para diminuir seu sofrimento. Todas estas pessoas não podem esperar, seu sofrimento é real e imediato. É importante lembrar também que todo este sofrimento é justificado pela pretensa proteção de uma minoria de usuários que apresentará um problema grave de abuso de
drogas. Ou seja, mais pessoas hoje em dia sofrem por causa da proibição do que o número de pessoas potencialmente prejudicadas pelo uso direto da droga.
11. Quais são as categorias de usuários identificadas pelo senhor durante os estudos realizados?
Desculpe, eu não posso responder esta pergunta com precisão. Acho uma pergunta relevante mas muito difícil de responder mesmo para pessoas que lidam com pacientes. Isto porque não existe um estudo sistemático que padronize a separação de pacientes em categorias universalmente aceitas.
Cadaestudo os pesquisadores decidem separar os grupos de pacientes dependendo do foco da pesquisa. Por exemplo, usuários freqüentes versus esporádicos, adolescentes com uso de múltiplas drogas ou apenas cannabis, ou cannabis e tabaco. Não conheço estudo que padronize os
tipos de usuários.Mas existem algumas indicações de padrões de uso. A maior parte dos usuários tem entre 17 e 25 anos, com uma redução progressiva do uso por volta dos 30 anos, quando a responsabilidade familiar e a mudança de rotina devido a filhos e trabalho modifica seus hábitos. Existe uma tendência a um aumento de consumo entre pessoas acima de 50 anos nos EUA. Mas, mesmo assim, as realidades sociais são muito distintas em nossa sociedade e certamente o padrão de uso por pessoas de classes mais pobres tende a ser diferente, com o uso mais raro, e mais precoce e associado à outras drogas. Existe um novo estudo sobre o uso de drogas e álcool entre adolescentes de um grupo
multiinstitucional liderado pela UNIFESP.12. Muitas pessoas entendem que a regularização e liberação são sinônimos. Como o Governo poderia trabalhar a diferenciação destes pontos?
Não acho que isto seja uma tarefa exclusiva do Governo. Todas as pessoas esclarecidas tem sua responsabilidade em divulgar e resguardar a precisão do pensamento e a clareza das soluções em relação à política racional sobre drogas. Uma papel importante tem a mídia, na escolha dos
termos a serem empregados e na escolha entre transmitir preconceitos e crenças infundadas ou transmitir fatos ou opiniões embasadas em fatos verificáveis. Mesmo podendo aparentemente significar apenas liberar o uso ou o comércio, “liberação” não é um termo técnico descritivo precisopara uma política racional sobre drogas, além disto é carregado de significados semi-pejorativos. A maioria dos que empregam este termo sãopessoas com uma convicção preconceituosa das opiniões e comportamentos alheios. Empregam o termo com a clara intenção de denegrir os objetivos de quem deseja trazer uma racionalidade a política de controle das
drogas. Nenhuma droga é liberada, talvez o açúcar branco, mas nenhuma outra é de uso livre. Todas são sujeitas à alguma restrição legal e regulamentação, seja no local de venda, na idade mínima para consumo ou de propaganda.
Legalização é um termo mais preciso, pois implica que a produção, distribuição, comércio e uso de uma substância será sujeita a uma legislação específica que implicará em uma série de
restrições e garantias mútuas. Regulamentação é um termo quase redundante em relação à legalização, já que toda lei implica em alguma regulamentação. No entanto, é útil para lembrar que diversos aspectos deum mercado legal podem ser regulamentados em diferentes níveis, seja político, federal, estadual e municipal; seja econômico, sujeito a regras do CADE, por exemplo, seja no nível de vigilância sanitária, etc.
13. O senhor acredita que o governo Dilma sinalizará positivamente para a discussão deste tema?
Sim, apesar de a própria declarar posição contrária a mudança legislativa neste momento. No entanto, muitos membros do seu partido e coligação sãopartidários da descriminalização ou mesmo da legalização e regulamentação da maconha e propõem uma revisão na Política Nacional de Drogas. A recente mudança do Senad (Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas) para o Ministério da Justiça já foi uma bom movimento nesta direção, demonstrando um distanciamento da política fracassada de “guerra às drogas” imposto pelo governo norte-americano. Embora a exoneração de seu primeiro diretor, o jovem advogado Pedro Abramovay, que defendeu publicamente a flexibilização de penas para presos por posse de pequenas quantidades de droga, primários e sem ligação com o
crime organizado, mas que foram acusados de traficantes, tenha sido um retrocesso. Além disto, a situação internacional é crescentemente favorável a uma mudança na política de drogas, em especial do fim da “guerra às drogas”, e por uma política de redução de danos. Existem diversas iniciativas importantes, listo algumas: as inúmeras legislaçõespassadas por estados americanos para permitir o uso do cannabis medicinal (mais de 15 estados atualmente) e a descriminalização da posse e plantio da maconha em diversos países inclusive na vizinha Argentina. O importante documento, “A declaração de Viena” de 2010, formulado e divulgado na Reunião Mundial sobre Aids em Viena. Este
documento, produzido por diversas entidades médicas e assinados por três ex-presidentes latino-americanos, Fernando Henrique Cardoso sendo um deles, exige o fim da política de guerra às drogas. Uma terceira mudança de paradigma é a constatação no relatório de 2009 do UNODC
(United Nations Office on Drugs and Crime) que a guerra às drogas teve conseqüências indesejadas como a formação e criação de um mercado negro violento e corrompedor (se é que esta palavra existe). E conclui como uma sugestão para implementação de políticas de descriminalização e fim
da repressão ao usuário.
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