Um dos favoritos ao Oscar, "O Discurso do Rei" convida à reflexão sobre a monarqui, a relação com seus súditos e a arrogância ligada à ostentação do poder
Numa das cenas mais provocantes de "O Discurso do Rei", Albert Frederick Arthur George (1891 - 1952. interpretado por Colin Firth, em papel recusado por Paul Bettany), sob os cuidados do terapeuta da fala Lionel Logue (1880 - 1963, Geoffrey Rush), assiste a vários filmetes publicitários. Em um deles, chama-lhe especial atenção para um discurso de Adolf Hitler (1889 - 1945), fluente e eloquente. Albert se impressiona com a força das palavras do homem que levaria o mundo a Segunda Guerra Mundial.
O nazismo não é tratado de frente no filme. Contudo, o roteiro de David Seidler - acusado de ser evasivo quanto ao tema - o mantém vivo nas entrelinhas. O diretor Tom Hooper, igualmente, o preserva, nas imagens. No longa, ainda é sugerida a simpatia que David (1894 - 1972), o renunciante rei Edward VIII, e sua amante, a americana Wallis Simpson (1896 - 1986) - destratada nos gabinetes e corredores do palácio de Buckingham por ser divorciada e estar com outra separação a caminho -, tinham pelo regime de Hitler.
"O Discurso do Rei" recupera um momento no qual a História britânica se define em uma conjunção de acontecimentos em 1936. No plano interno da monarquia, tivemos a crise de credibilidade popular; a sucessão conturbada de George V com a recusa do novo rei, Edward VIII; e o drama de Albert, que precisou enfrentar sua timidez e a gagueira. Também havia a insatisfação do Parlamento com Edward VIII. O primeiro ministro Stanley Baldwin chegou a pressionar o palácio, ameaçando com a renúncia do gabinete, caso Edward continuasse sua relação com a norte-americana divorciada. No plano externo, a crise econômica, ascensão de Hitler e a iminência da guerra.
Com a renúncia de Edward, o Duque de York, Albert, o próximo na linha de sucessão, assume o trono como George VI. Mesmo antes da posse, passa por constrangimentos ao não fazer os pronunciamentos no rádio. É aí que entra em cena sua mulher, Elizabeth Bowes-Lyon (Helena Bohan-Carter), que o leva para o terapeuta da fala, o qual tanto passa a tratar da gagueira como destravar os problemas psicológicos dele, adquiridos na infância, já que foi criado sob a opressão de suas babás.
Bastidores da corte
"O Discurso do Rei", segundo o roteirista David Seidler, não tem por base o romance "The King´s Speech: how one man saved que British Monarchy", de Mark Logue, neto de Lionel (no Brasil pela Editora Record, R$ 29,90). O enredo foi armado a partir de entrevistas com a Rainha-Mãe, falecida em 2001. Ela pediu para publicar somente após a sua morte. Basicamente, o filme trata da relação entre o monarca e o cidadão, mas revela uma história pouco conhecida cheia de detalhes relevantes.
O cinema britânico tem, ao longo de sua história, feito, sistematicamente, abordagens simpáticas dos personagens do Palácio de Buckingham. Essa visão começa a mudar com "A Rainha" (2006), no qual Stephen Frears faz uma irônica reconstituição da relação entre a monarquia e a nação, centrado na relutância da rainha Elizabeth II (Helen Mirren) em se curvar perante o clamor popular para que a princesa Diana tivesse um funeral real. Apegada às tradições, Elizabeth não percebe as mudanças que se processam do lado de fora de seu Palácio.
A arrogância originada da importância dada à ostentação do poder é novamente tratada em "O Discurso do Rei". Ela é trabalhada, sobretudo, na relação entre o então Duque de York, o futuro monarca George VI, e o terapeuta Lionel. Não em apenas uma ocasião, mas em várias.
Enquanto em Lionel se manifesta um propósito de igualdade - "aqui é melhor nos fazermos iguais", diz ele ao Duque de York no primeiro encontro; "meu castelo, minhas regras", afirma mais tarde, ao salientar que o Duque deve vir ao consultório e não o terapeuta ao Palácio; e, principalmente, em tratá-lo por "Bertie", como é chamado entre seus familiares. Essa mesma exposição volta a ocorrer, mais tarde, na Abadia, quando Lionel se senta na cadeira na qual os reis recebem a Coroa.
Ao Duque de York sobra elegância - está sempre bem vestido, anda de forma imponente e exige o devido tratamento hierárquico por ser um dos ocupantes da casa de Windsor -, e arrogância mesclada de destempero. Na cena em que caminham pela avenida envolta pela névoa - uma sequência antológica que faz refletir sobre a divisão de classes e intolerância dos detentores do poder -, Lionel faz um gesto de tocá-lo, mas ele logo se afasta o chama a atenção. "Não se atreva a tanto", diz furioso.
A reação do Duque vai mais longe ainda, em grosseria, ao se utilizar de uma revelação do terapeuta, o qual, em conversa informal sobre a sua família, revelou ser o pai um fracassado fabricante de cerveja. "Você é filho de um cervejeiro decepcionante" e "você não é ninguém!".
Essa visão preconceituosa aos "inferiores" volta a ser exposta, no interior do Palácio, quando a família real se reporta a Wallis Simpson. Ao forçar Edward VIII a renunciar, não sabe a família real o erro histórico que cometeu. Ainda hoje há quem lamente que o divórcio - via Wallis Simpson e George VIII - não tenha sido aceito pela Monarquia. Esqueceram que Henrique VII matou gente e desonrou o trono em sua luta pelo divórcio.
Crítica
Não há, no filme, uma "queda de braço" entre monarca e súdito. Mas mostra como um cidadão pode colocar um rei em comunicação com a nação, diga-se, povo. As adversidades entre eles expõem apenas os limites entre classes, uma exposição de como a monarquia vê o povo, ou os "seus súditos". Sabe-se que o tratamento fonoaudiólogo concebido por Lionel fez o rei superar todas as suas fraquezas e que, em retribuição, o rei teria lhe dado um título nobre e sido um monarca sensível às questões sociais.
"O Discurso do Rei", portanto, não traz uma visão simpática da monarquia. Vai além. E atentem: a monarquia, citada pelos historiadores como um sistema já distante do mesmo poder de antigamente, que ostenta um caráter puramente "simbólico" nos tempos atuais, corre riscos. Ao redor do planeta, ainda existem 44 arquejantes exemplares. Mas, na onda de exigência de liberdade que provoca mudanças no mundo e a mentalidade nas pessoas, não será surpresa se, em breve, elas sumirem do mapa. Deixa a vida para figurar nos livros de História - ou em bons filmes, como "O Discurso do Rei".
Numa das cenas mais provocantes de "O Discurso do Rei", Albert Frederick Arthur George (1891 - 1952. interpretado por Colin Firth, em papel recusado por Paul Bettany), sob os cuidados do terapeuta da fala Lionel Logue (1880 - 1963, Geoffrey Rush), assiste a vários filmetes publicitários. Em um deles, chama-lhe especial atenção para um discurso de Adolf Hitler (1889 - 1945), fluente e eloquente. Albert se impressiona com a força das palavras do homem que levaria o mundo a Segunda Guerra Mundial.
O nazismo não é tratado de frente no filme. Contudo, o roteiro de David Seidler - acusado de ser evasivo quanto ao tema - o mantém vivo nas entrelinhas. O diretor Tom Hooper, igualmente, o preserva, nas imagens. No longa, ainda é sugerida a simpatia que David (1894 - 1972), o renunciante rei Edward VIII, e sua amante, a americana Wallis Simpson (1896 - 1986) - destratada nos gabinetes e corredores do palácio de Buckingham por ser divorciada e estar com outra separação a caminho -, tinham pelo regime de Hitler.
"O Discurso do Rei" recupera um momento no qual a História britânica se define em uma conjunção de acontecimentos em 1936. No plano interno da monarquia, tivemos a crise de credibilidade popular; a sucessão conturbada de George V com a recusa do novo rei, Edward VIII; e o drama de Albert, que precisou enfrentar sua timidez e a gagueira. Também havia a insatisfação do Parlamento com Edward VIII. O primeiro ministro Stanley Baldwin chegou a pressionar o palácio, ameaçando com a renúncia do gabinete, caso Edward continuasse sua relação com a norte-americana divorciada. No plano externo, a crise econômica, ascensão de Hitler e a iminência da guerra.
Com a renúncia de Edward, o Duque de York, Albert, o próximo na linha de sucessão, assume o trono como George VI. Mesmo antes da posse, passa por constrangimentos ao não fazer os pronunciamentos no rádio. É aí que entra em cena sua mulher, Elizabeth Bowes-Lyon (Helena Bohan-Carter), que o leva para o terapeuta da fala, o qual tanto passa a tratar da gagueira como destravar os problemas psicológicos dele, adquiridos na infância, já que foi criado sob a opressão de suas babás.
Bastidores da corte
"O Discurso do Rei", segundo o roteirista David Seidler, não tem por base o romance "The King´s Speech: how one man saved que British Monarchy", de Mark Logue, neto de Lionel (no Brasil pela Editora Record, R$ 29,90). O enredo foi armado a partir de entrevistas com a Rainha-Mãe, falecida em 2001. Ela pediu para publicar somente após a sua morte. Basicamente, o filme trata da relação entre o monarca e o cidadão, mas revela uma história pouco conhecida cheia de detalhes relevantes.
O cinema britânico tem, ao longo de sua história, feito, sistematicamente, abordagens simpáticas dos personagens do Palácio de Buckingham. Essa visão começa a mudar com "A Rainha" (2006), no qual Stephen Frears faz uma irônica reconstituição da relação entre a monarquia e a nação, centrado na relutância da rainha Elizabeth II (Helen Mirren) em se curvar perante o clamor popular para que a princesa Diana tivesse um funeral real. Apegada às tradições, Elizabeth não percebe as mudanças que se processam do lado de fora de seu Palácio.
A arrogância originada da importância dada à ostentação do poder é novamente tratada em "O Discurso do Rei". Ela é trabalhada, sobretudo, na relação entre o então Duque de York, o futuro monarca George VI, e o terapeuta Lionel. Não em apenas uma ocasião, mas em várias.
Enquanto em Lionel se manifesta um propósito de igualdade - "aqui é melhor nos fazermos iguais", diz ele ao Duque de York no primeiro encontro; "meu castelo, minhas regras", afirma mais tarde, ao salientar que o Duque deve vir ao consultório e não o terapeuta ao Palácio; e, principalmente, em tratá-lo por "Bertie", como é chamado entre seus familiares. Essa mesma exposição volta a ocorrer, mais tarde, na Abadia, quando Lionel se senta na cadeira na qual os reis recebem a Coroa.
Ao Duque de York sobra elegância - está sempre bem vestido, anda de forma imponente e exige o devido tratamento hierárquico por ser um dos ocupantes da casa de Windsor -, e arrogância mesclada de destempero. Na cena em que caminham pela avenida envolta pela névoa - uma sequência antológica que faz refletir sobre a divisão de classes e intolerância dos detentores do poder -, Lionel faz um gesto de tocá-lo, mas ele logo se afasta o chama a atenção. "Não se atreva a tanto", diz furioso.
A reação do Duque vai mais longe ainda, em grosseria, ao se utilizar de uma revelação do terapeuta, o qual, em conversa informal sobre a sua família, revelou ser o pai um fracassado fabricante de cerveja. "Você é filho de um cervejeiro decepcionante" e "você não é ninguém!".
Essa visão preconceituosa aos "inferiores" volta a ser exposta, no interior do Palácio, quando a família real se reporta a Wallis Simpson. Ao forçar Edward VIII a renunciar, não sabe a família real o erro histórico que cometeu. Ainda hoje há quem lamente que o divórcio - via Wallis Simpson e George VIII - não tenha sido aceito pela Monarquia. Esqueceram que Henrique VII matou gente e desonrou o trono em sua luta pelo divórcio.
Crítica
Não há, no filme, uma "queda de braço" entre monarca e súdito. Mas mostra como um cidadão pode colocar um rei em comunicação com a nação, diga-se, povo. As adversidades entre eles expõem apenas os limites entre classes, uma exposição de como a monarquia vê o povo, ou os "seus súditos". Sabe-se que o tratamento fonoaudiólogo concebido por Lionel fez o rei superar todas as suas fraquezas e que, em retribuição, o rei teria lhe dado um título nobre e sido um monarca sensível às questões sociais.
"O Discurso do Rei", portanto, não traz uma visão simpática da monarquia. Vai além. E atentem: a monarquia, citada pelos historiadores como um sistema já distante do mesmo poder de antigamente, que ostenta um caráter puramente "simbólico" nos tempos atuais, corre riscos. Ao redor do planeta, ainda existem 44 arquejantes exemplares. Mas, na onda de exigência de liberdade que provoca mudanças no mundo e a mentalidade nas pessoas, não será surpresa se, em breve, elas sumirem do mapa. Deixa a vida para figurar nos livros de História - ou em bons filmes, como "O Discurso do Rei".
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